Sara Martins: Em Entrevista

Aos 23 anos, a designer Sara Martins juntou os seus pensamentos e as suas histórias numa só colectânea poética, intitulada “No Avesso das Horas” e editada pela Epopeia.

Quando, aos nove anos, te disseram que um dia escreverias um livro, começaste a idealizá-lo? Tanto a nível de conteúdo como a nível visual?
Aos nove anos só sabia que gostava de escrever, não idealizava um livro, apenas o meu caderno de Língua Portuguesa. Esse caderno, de capa cor de rosa, caligrafia pouco treinada e estórias criadas por uma menina de nove anos era, na inocência, o meu livro.


Tiveste a oportunidade de juntar as tuas duas paixões na tua rotina: o design e a escrita. E ambas vivem de criações que exigem inspiração. Quais são os principais desafios que encontras durante o processo criativo tanto no design como na poesia?

O processo criativo existe em ambos. No entanto, é completamente distinto. No design, o grande desafio passa por tornar clara a mensagem que queremos transmitir. É um processo mais científico que criativo, temos de conseguir moldar a nossa criatividade à técnica que o design exige. Na poesia, a lógica inverte-se. A objetividade passa para segundo plano, e o grande desafio passa por contar as minhas histórias, ou, traduzir as minhas emoções, procurando encaixá-las na forma de metáforas e analogias, codificando-nas e enaltecendo-as ao ponto de as mesmas ganharem as suas próprias emoções.


Como te sentiste ao desenhar o teu próprio livro?
Os textos são a extensão de quem os escreve, os quais têm dois caminhos - o da gaveta e o do mundo. Quando se escolhe o da gaveta, os versos morrem no escuro, pois estes só vivem da leitura. Desenhar um livro é dar vida ao seu conteúdo, é dar-lhe uma cara e pernas para andar. Senti que criei uma vida, que dei tudo aquilo que podia dar numa só peça. Em “Avesso das Horas” encontram uma personificação de mim para o mundo.


Fala-nos da tua poesia. Como a definirias?
Escrever é estender-nos sobre o papel e é isso que ela é. Sempre passou por mim como uma necessidade de expressão, atravessando o filtro das analogias, e transformando-se em estímulos, emoções e sentimentos análogos aos que senti, direcionados para aqueles que os lêem. É estranha, um pouco confusa. No entanto, verdadeira.

“No Avesso das Horas” é o título do teu livro. Explica-nos o conceito que carrega.
A vida é feita de ciclos, encontramo-los padronizados nas mais variadas situações. Por norma, o começo é sempre o final, porém, de uma perspectiva diferente/transformada. O conceito é materializado a partir de um relógio analógico. As horas que os ponteiros nos indicam são intemporalmente as mesmas, uma sequência que sabemos de cor. No entanto, o tempo é sempre diferente: a meia noite de hoje nunca será a meia noite de amanhã. O tempo passa, o mundo vive em constante mutação, os ideais mudam a cada soar do ponteiro, e nós vivemos em transformação.
“No Avesso das Horas” personificamos um relógio onde o exterior é o nosso corpo, mas no seu avesso, onde encontramos as engrenagens, coincidem os nossos pensamentos, perspectivas e emoções, que mudam a cada instante.



Quais foram as tuas principais inspirações para o criar?
A inspiração é imprevisível. No entanto, chegou-me a partir de vivências, de momentos bons e menos bons, que serviram de combustível para pintar esta tela. A poesia de Fernando Pessoa nunca me deixou indiferente, e foi uma das alavancas que ajudou a fermentar este gosto pelas palavras e pelas emoções. As paisagens naturais e citadinas também me enchem de palavras, assim como a complexidade do corpo humano, o que me permite pintar as mais distintas paisagens de uma só emoção.


N
um dos teus poemas, dizes: “Faço da escrita melodia dos sons que ouvi/ Leves factos que ameaçam a existência em que vivi./ Ainda assim me comprometi,/ a escrever/ Então sobrevivi.” Escreves sobre experiências vividas, escreves sobre sobrevivência. Explica-nos o papel da escrita na tua vida.
Sabemos que este mundo não é um mundo cor de rosa. No entanto, gostamos de o pintar como se assim o fosse; de fechar os olhos ao que não queremos ver, iludindo-nos, muitas vezes, ao inevitável da vida. Por vezes, isto acontece apenas porque nunca nos deparámos com nada menos bom, mas, quando acontece, apercebemo-nos da fragilidade da vida, da covardia humana e do medo de nós próprios. Assim foi, num dia vivia num mundo cor de rosa, no outro, foi como se tivesse caído dentro de um buraco, e não sabia como sair de lá, entregando-me aos medos, receios e filosofias de vida. Questionei a minha existência, as minhas atitudes, questionei o mundo, o universo e a religião. O que mais existia na minha cabeça eram “porquês”, pouca vontade de falar, mas muitas palavras dentro de mim, que me engoliam cada vez mais para dentro desse buraco onde sentia que tinha caído. Quando se é uma pessoa de poucas palavras, e elas inevitavelmente surgem dentro de nós, de alguma maneira têm de sair, e foi nessa situação que a escrita me salvou. Se não tivesse descoberto esse ponto de luz que me conduziu até ao exterior daquele sítio, talvez hoje ainda estivesse por lá.


Escreves sobre Santa Maria de Faroon e deduzimos que Faro seja para ti uma inspiração também. Que importância teve a mudança de cidade para a tua vida e consequentemente para a tua escrita?
Mudar de cidade significou também mudar de vida. Distanciar-me de sítios que me traziam memórias menos boas, pisar outro chão que me trouxe boas gentes e trocar o trabalho pelos estudos, originou um ponto de viragem em mim, na minha vida e, consequentemente, naquilo que escrevia. Faro acabou por trazer a escrita sobre uma visão citadina que anteriormente pouco ou nada existia.


As tuas poesias não estão datadas no teu livro mas todas têm data. Estão dispostas por ordem cronológica?
Sim. Tendo em conta o conceito do livro, fazia sentido ordená-las cronologicamente. Assim como num ciclo existe um ponto onde o começo e o fim se cruzam, no livro também acontece, quando percebemos que o primeiro e o último poema se referem ao mesmo tema. Contudo, encontramos uma visão completamente diferente.


Qual a data do teu primeiro e último poema nesta coletânea? Entre essas datas, o que mudou em ti e na tua escrita? Essa mudança é notória nas tuas palavras?
O primeiro poema foi escrito em 2012 e o último em maio deste ano, 2019. São sete anos de mudança, de feridas abertas e saradas, de cicatrizes e boas memórias. Em mim mudaram-se os olhos, já não vejo o mundo da mesma maneira, estragou-se um pouco o coração. No entanto, continua o mesmo, e mudaram-se as mãos, já escrevem de uma maneira um pouco diferente. Quem ler o livro pela sua ordem vai conseguir observar essa mutação, entre um Ser de 16 anos e um Ser de 23.

Com o tempo, há palavras que perdem a força e que deixam de fazer sentido. No entanto, existem outras que duram, que continuam fortes e ainda nos fazem sentir o mesmo. Relendo algum dos teus poemas, já sentiste esta perda de sentido?
Os primeiros poemas causam-me alguma estranheza, já não os escreveria assim, mas é esse o sentido deste livro. A maneira de se sentir muda, e a visão sobre as coisas também. Podemos encontrá-lo no primeiro e no último poema. Ambos falam da mesma situação. Porém, com sete anos de diferença. Enquanto no primeiro encontramos alguém que se encontra num caminho desconhecido, no último conseguimos perceber que já conhece o chão que pisa. No poema “Inquietações”, encontra-se o cruzamento entre o fim e o começo, o ponto de viragem no ciclo, quando se diz “Sinto tanto frio que me incapacita de sentir/ Mas a ânsia de encontrar versos maiores/ Acalma a inquietude ao ver campos melhores/ Devolve a pulsação e retoma a sede de agir.”


“No Avesso das Horas” será apresentado brevemente.Quais são as expectativas?
Pensar no futuro sempre me assustou, deixa-me sempre com uma visão relativa e pouco nítida, mas o feedback tem sido bastante positivo, o que me leva a acreditar que as coisas possam correr bem.



Consegues imaginar outro percurso na tua vida que não tivesse ligado às artes?
As artes sempre surgiram como uma necessidade de expressão. Era possível deixar-me levar por um percurso profissional distante das artes, mas nunca deixá-las de parte. A espontaneidade com que a escrita e o desenho apareceram fez-me concluir que fazem parte de mim. Por isso, este percurso não é uma escolha, mas sim um caminho inevitável.

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